O FUTEBOL NUTELLA, O SAUDOSISMO E O TEMPO QUE PERDEMOS

“A história do futebol é uma triste viagem do prazer ao dever. Ao mesmo tempo em que o esporte se tornou indústria, foi desterrando a beleza que nasce da alegria de jogar só pelo prazer de jogar. Neste mundo do fim de século, o futebol profissional condena o que é inútil, e é inútil o que não é rentável. Ninguém ganha nada com essa loucura que faz com que o homem seja menino por um momento, jogando como o menino que brinca com o balão de gás e como o gato brinca com o novelo de lã: bailarino que dança com uma bola leve como o balão que sobe ao ar e o novelo que roda, jogando sem saber que joga, sem motivo, sem relógio e sem juiz”. (Eduardo Galeano em “Futebol ao Sol e à Sombra”).

Schoolboy Football

Meninos brincando de bola. Anos 1950s.

Não cabe aqui discutir quais motivos fizeram o famoso creme de chocolate se tornar um dos símbolos para as formas de ser ou agir modernas tidas como inferiores ou menos valorosas que as do passado, mas o fato é que viralizou nas últimas semanas o meme “Raiz vs Nutella“, inundando repetitivamente as redes sociais de comparações entre o moderno e o “clássico”, com boas pitadas de humor, mas muitas vezes acompanhada de um saudosismo sincero e muito frequente nas manifestações das gerações que nasceram no período imediatamente anterior ao boom da internet.

O futebol tem tudo a ver com este movimento e, não coincidentemente, atribui-se como uma das origens deste meme, um comentário sobre a Taça Libertadores da América feita numa conta pessoal do Twitter.

Nós, amantes do futebol, quase que em sua totalidade, já nos deparamos exaltando algumas das características do futebol do passado, estabelecendo uma oposição direta àquilo que se pratica atualmente. “As chuteiras que não são mais pretas, o 10 clássico que não existe mais, o amor à camisa, o toque com classe, a cadência… Ódio eterno ao futebol moderno!” Por mais irônico que possa parecer, a modernidade da internet e o alcance das redes sociais fez destas afirmações, e outras tantas, máximas viralizadas e repetidas incessantemente, como se saíssem das conversas de várzea e de boteco – legítimo espaço das recordações e saudosismo do futebol brasileiro – e, ganhassem toda uma repaginada virtual para acometer a grupos de jovens amantes do esporte bretão (inclusive àquele que vos escreve, no alto dos seus 25 anos).

Aí mora a complexidade da coisa. O péssimo trabalho de resgate histórico que temos no Brasil (que nem de longe se resume ao futebol), o acesso mais instantâneo às inúmeras ligas ao redor do mundo, e o volume de recursos investidos em propaganda e marketing fazem, cada vez mais, com que clubes e atletas posicionados nos grandes centros (o que atualmente se resume a meia dúzia de países na Europa) sejam enxergados pelas novas gerações como os autênticos praticantes do bom futebol.

D.C. United v Los Angeles Galaxy

Banner gigante com o astro David Beckham

Tem se tornado comum que jovens adolescentes desconheçam completamente times tradicionais do interior do nosso país e jogadores históricos do passado de nosso futebol, ao passo que sabem escalar facilmente times como Barcelona, Real Madrid, Bayern de Munique, Manchester United, City e outros coqueluches que sempre aparecem em destaque nos videogames e televisão. Isso gera uma reação forte por parte de alguns grupos de jovens (e outros nem tão jovens assim) mais antenados com o passado glorioso de nosso futebol, da posição que ele ocupava no imaginário dos torcedores, quando não disputava espaço com ligas muito mais ricas. Criamos uma retranca para defender as raízes daquilo que tanto amamos, a ponto de não fazer qualquer mediação entre o que é valorizar o passado e o que é parar no tempo e ser contra tudo que é novo. Do nosso amor, geramos o ódio (ao chamado futebol moderno).

Como aponta Irlan Simões num belíssimo artigo ao site “Outras Palavras”, é primordial identificar quem e o que são nossos principais inimigos nessa peleja. O saudosismo, apego romantizado àquilo que vem do passado, não trará muitos frutos para além da soberba de que nossas tradicionais camisas jogam por si só, de que não precisamos mudar nada e pior, reforça politicamente uma dezena de dirigentes caquéticos, que estão no poder em nosso futebol há décadas repetindo fórmulas retrógradas, antiquadas e antiéticas. Não podemos esquecer que figuras como João Havelange, Eurico Miranda, Ricardo Teixeira, José Maria Marin, Alberto Dualib e Mustafá Contursi fazem tão parte do passado de nosso futebol como Sócrates, Zico, Garrincha, Júnior e Edmundo. Este hall de dirigentes não é o passado que reivindicamos, tão pouco são nossos aliados. Pode parecer óbvio, mas ao não delimitar as críticas ao futebol moderno, ou esbravejar de forma absoluta que “antigamente é que era bom”, acabamos não mobilizando nada a favor de um futebol mais democrático, acessível a todos e que preserve a alma que fez dele um elemento tão importante na sociedade brasileira.

“A lembrança é o elo entre o passado e o presente. É preciso separar a nostalgia, a saudade, um delicioso sentimento, do saudosismo de achar que tudo no passado era melhor, mais bonito e mais feliz. Saudosistas, com frequência, idolatram um passado que nunca existiu. “Eu não vivo do passado. O passado é que vive em mim” (Tostão em sua coluna da Folha de S.Paulo em 01/01/2017).

Como aponta Galeano, de forma poética e genial, no trecho citado logo no início deste texto, a “indústria futebol”, o business, a necessidade insaciável de fazer o máximo de dinheiro com tudo, é o que nos toma de assalto a essência do esporte que tanto aprendemos a amar. As arenas que expulsam o torcedor mais pobre das arquibancadas (e que agora também os quer expulsar de suas imediações), as chuteiras multicolor, as camisas em que o patrocinador aparece mais que o escudo do time e grande parte do que criticamos são apenas sintomas de algo muito maior que é o profundo processo de mercantilização do futebol. O torcedor sai de cena para que apareça o absoluto consumidor e, assim, não havendo espaço na relação empresa-consumidor para irracionalidades (tão típicas da paixão pelo futebol e da relação entre o torcedor e seu clube do coração).

2014 FIFA World Cup Final Draw

Copa do Mundo de 2014: sorteio dos Grupos

Tudo é precificado, medido e padronizado. O grau de envolvimento e participação neste espetáculo todo são definidos pela capacidade do indivíduo em pagar por aquilo. Ir ao estádio, apreciar um lanche e uma “breja” antes ou depois do jogo ou ter um adereço do time, tudo é engolido pelos clubes e pelas grandes empresas como espaços de valorização e geração de receita. “Mas antigamente as pessoas também pagavam por tudo isso, qual a diferença atualmente? “, pode alguém questionar.

Sem adentrar em debates teóricos da Economia ou afins, um dos pontos fundamentais é que, as grandes empresas, e os próprios clubes, agem no sentido de concentrar todas essas atividades, expulsando (e até criminalizando) parte do comércio popular que tipicamente sempre atuou nas portas de estádio e arredores oferecendo uma variedade de opções e preços disponíveis e compondo parte do que era “ir ao estádio”. Esta lógica também se reproduz do lado de dentro, com cada vez menos variedade de setores e ingressos populares. Criam-se monopólios em torno do futebol, em que se cobram valores exorbitantes propositalmente, visando atingir certa camada de “consumidores” que podem pagar por estes produtos, maximizando as receitas. Não se trata de ser contra o pedaço de pizza (quase sempre seco e sem graça) de 10 reais vendido dentro do estádio ou contra a cadeira estofada disponível em determinado setor, mas sim de reivindicar o espaço do “Seu Zé” vender seu delicioso lanche de pernil na calçada do estádio (pelos mesmos 10 reais) e de poder ver jogos em arquibancadas simples e financeiramente acessíveis a mais pessoas. É lá que o espetáculo acontece!

Czech Republic v Italy

2013: jogo entre República Theca e Itália

Ou seja, o futebol é em sua essência democrático, tem espaço para todas e todos, desde que sua lógica maior não seja a de geração desenfreada de lucros. Ser simplesmente contra o “futebol moderno” significa muito pouco nessa luta, afinal, não há nada de moderno em transformar tudo em mercadoria e intensificar isso (o nome disso é capitalismo e está aí há séculos). Vamos desencanar do puro e simples ódio ao moderno, resgatemos e exaltemos o que há de mais lindo no passado de nosso futebol, inclusive utilizando dos meios tecnológicos para isso (tantas páginas como a “Antigas Fotos do Futebol Brasileiro” já fazem isso muito bem), estudemos as evoluções técnicas e táticas do futebol, e que são presentes em qualquer esporte, e foquemos em rechaçar o futebol-negócio e a predominância do dinheiro sobre as pessoas e suas paixões.

“Identifiquemos então o “futebol moderno” como o futebol-negócio, como a ideia de que tudo deve se tornar mercadoria estar sob o controle autoritário daqueles que acham que nada na vida deve existir para além do dinheiro. Com certeza estaremos cientes de quem são os verdadeiros inimigos”. (Irlan Simões)

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• Texto de Pedro Henrique, economista formado pela Unicamp. Mestrando em Desenvolvimento Econômico pela mesma universidade e atua como analista no Instituto de Tecnologia Social – ITS BRASIL.

 

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João Corneta

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